Saltburn, olhar puritano e o espectador tiktoker

Caio Vinicius
8 min readDec 28, 2023

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Emerald Fennell e o filme mais badalado do ano

Jacob Elordi em “Saltburn” 2023

Por onde posso começar a falar sobre Saltburn? Simplesmente um dos filmes mais comentados dos últimos dias depois que fez sua estreia no PrimeVideo, e sinceramente, fui olhar por esse clamor coletivo que o filme estava inserido. No Twitter, pelo menos na minha bolha, esse filme foi muito comentado por cenas de nudez controversas, algumas cenas grotescas, foi acusado até de Queerbaiting e de ser uma espécie de “novo Parasita”, ou como o crítico Pablo Villaça falou uma vez (e eu achei essa definição incrível), “Um Parasita escrito por Val Marchiori”. Mas que diabos de filme é Saltburn e porque ele ganhou tanta visibilidade nas mídias sociais, e mais, oque esse filme tem a dizer sobre o espectador contemporâneo e sua relação com cenas de sexo, nudez e um conteúdo midiático mais transgressor e provocativo?

Saltburn é uma espécie de sátira e suspense (pelo menos eu acho que ela quis fazer isso) dirigido pela Emerald Fennell, diretora que fez certo barulho com Bela Vingaça (2021) e que agora volta aos holofotes de uma forma mais comentada. O filme segue Oliver Quick, que é interpretado pelo brilhante Barry Keoghan, um estudante que ingressou em Oxford no começo dos anos 2000 e que tem uma dificuldade de se inserir naquela universidade por ser bolsista e de uma classe social menos abastada do que muitos de seus colegas. Oliver Quick aparenta ser um garoto tímido, tem um só amigo em Oxford, não fala muito e é recluso. Em certo momento, ele acaba demonstrando um interesse (que acaba se transformando em obsessão) no aristocrata Félix (Jacob Elordi). Depois que Oliver empresta sua bicicleta pro Félix, os dois começam a se aproximar cada vez mais, até que Félix convida Oliver para passar um tempo com sua família em Saltburn, um castelo gigantesco cheio de excessos e controvérsias. Oliver conhece a família problemática, rica e alieada de Félix, Sir James (Richard E. Grant), Venetia Catton (Alison Oliver), Elsbeth Catton (Rosamund Pike) e o primo da família, que Oliver teve um breve contato quando chegou em Oxford, Farleigh (Archie Madekwe). A família se mostra um estereótipo de família rica malvadona. A mãe da família, Elsbeth, se mostra até alheia de onde fica Liverpool, uma das principais cidades da Inglaterra, associada a classe trabalhadora. Essa análise vai conter spoilers, então se você se importa com isso e não viu Saltburn ainda, sugiro que saia do texto e leia depois. Oliver se mostra cada vez mais obcecado com Félix, algo doentio que beira a psicopatia, chupa a irmã de Félix, tenta persuadir Farleigh com uma punheta e flerta até com a mãe da família. Mais tarde no filme, iremos descobrir que a obsessão do personagem por Félix, era só um interesse econômico pela vida do garoto. Eu posso comentar muita coisa aqui em Saltburn, mas quis apresentar o filme de forma muito breve, pois estou presumindo que todos que estão lendo isso assistiram o filme e vão entrar nessa pira comigo. A diretora, Emerald Fennell, não sabe oque faz aqui nesse filme. Ele tenta ser uma crítica social, e falha. Não sei se porque a diretora vem de família rica, e a sua proximidade com essa vida faz a possível crítica social do filme ser extremamente fraca e superficial, ou se a crítica não funciona direito pela individualização que o filme faz em cima do personagem do Oliver. O filme é muito mais sobre ele do que qualquer outra coisa. Os espaços pra nuances e críticas sociais aqui são nulos. As comparações com “Parasita”, na minha opinião, são muito injustas por “Parasita” retratar a desigualdade social na Coreia do Sul de uma forma muito mais coletiva e humanizada do que a diretora tenta fazer em Saltburn. O filme de Fennell não sabe oque quer ser na maior parte do tempo. Ele mira em Pasolini, mas não tem a sofisticação e a intelectualidade do diretor. Ele mira em “Talentoso Mr Ripley”, mas não é tenso e charmoso como o filme de Anthony Minghella. Acho que Saltburn deveria ser mais cínico e menos explicativo. Deveria dar espaço para insinuações e não se preocupar em ser tão expositivo. Aquele final, por mais legal e performático que seja, é extremamente ruim por sua obviedade e seu desejo de precisar explicar tudo nos mínimos detalhes para que o público consiga consumir de forma mastigada. Acho que a diretora precisa de umas revisões aqui e ali no roteiro. Mas Saltburn não é de tudo ruim, começando pela sua breguiçe extrema (que eu adorei) e que ele abraça sem medo de ser feliz. O visual gritando anos 2000 é maravilhoso. O elenco está muito bom também. Barry e Elordi aqui estão incríveis, além de Alison Oliver estar ótima também como a irmã de Félix. Aquele conflito da banheira é muito interessante e eleva a personagem para outro nível dentro do longa. Eu me diverti vendo Saltburn. Muito. Não me entenda mal quando eu digo que a diretora não sabe oque está fazendo. Acho que ela não teve um foco específico no que queria retratar aqui e muitas coisas ficaram superficiais, além do excesso de simbolismos mesquinhos que muitos Youtubers devem ter adorado por dar inúmeros conteúdos com o título de “Final de Saltburn explicado”. A obra de arte, quando é criada para ter uma utilidade ou além, quando já é concebida para ser interpretada, cheia de subtextos e simbolismos e tenta se desvincular de sua forma, dando ênfase em um conteúdo pseudo-intelectual que acha que é mais inteligente do que realmente é, é ai que eu acho que está o problema. Saltburn tenta ir para vários lados, e se perde no meio do caminho. Eu abracei a estética brega anos 2000 e o roteiro escrito pela Ana Hickmann, mas alguém precisa ensinar a diretora a fazer finais. Dito isso, quero discutir duas coisas aqui nesse texto: O espectador tiktoker, o olhar puritano e o falso moralismo do espectador médio contemporâneo

O olhar puritano no cinema

Instinto Selvagem de Paul Verhoeven

Uma das coisas que fez Saltburn ser um dos assuntos mais comentados esses últimos dias no Twitter foi suas cenas desconfortáveis e cenas de nudez, além de cenas de sexo. Vi muitos comentários na rede social do nosso inimigo Elon Musk que falava sobre a inutilidade dessas cenas no filme, e quando assisti Oppenheimer do Nolan, a cena que o físico transa com a Jean Tatlock (Florence Pugh), mesmo sendo uma cena que é coerente, que acrescenta pro desenvolvimento da narrativa e do conflito interno da personagem da Katherine Oppenheimer, a cena de sexo foi considerada “inútil” e “desnecessária”. Mas sério, cenas de sexo só devem ser colocadas em filmes quando acrescentam algo na narrativa? Quando o espectador médio começou a ficar tão moralista? Será que foi a seleção de filmes em streaming que dá uma gama de filmes pré selecionados pro público e que se mantém em um algoritmo que obviamente preza o lucro e a distribuição em massa, oque faz esses filmes não serem tão transgressores, pois os estúdios precisam lucrar e pra isso, precisam ter uma gama considerável de pessoas acessando os conteúdos? Acho que existem várias respostas para isso. Mas é óbvio, o espectador, não apenas o mais conservador, mas os mais jovens e mais progressistas também estão inclusos nisso; está muito incomodado com as cenas de sexo nos filmes. Oque é uma merda e limita as produções em vários quesitos. Por exemplo, a era do thriller erótico já passou e parece muito longe olhando para trás. Filmes como Showgirls e Basic Instinct do Paul Verhoeven parecem ser impossíveis de serem concebidos hoje em dia. Ao mesmo tempo que muitas produções consideradas soft porn entram em catálogos de streaming, onde o sexo em cena é expositivo e estimulado de uma forma mais leve, mas que não parece nada mais do que um conteúdo adulto um pouco menos explícito que a plataforma deixou passar. Sei lá. Acho que essa busca por utilidade na arte, e mais, utilidade em cenas de sexo no cinema, acaba fazendo a gente domar as produções do nosso tempo, tornando elas nada mais do que mercadorias castradas. Não acho que filmes como 365 Dias deveriam existir, pois é basicamente um filme sem um conteúdo aparente e que serve só para ser um soft porn no Netflix, mas acho que proibir ou buscar utilidade em cenas de sexo e nudez em obras também é uma redução do fazer artístico em mercadoria interpretativa. Não sei. Esse falso moralismo coletivo me cansa de uma tal maneira. Saltburn tem cenas com um teor mais transgressor, óbvio, e que não acho nenhum problema nisso. O problema não são cenas de sexo, cenas grotescas e cenas de nudez, mas se o longa se compromete com os temas que tenta abordar, além da forma como ele comunica sua mensagem (ou a falta dela) através da linguagem. Não sei se existe “arte ruim” objetivamente falando, mas com certeza nunca foi as cenas de sexo e nudez que diminuíram o valor artístico das obras. Parem de olhar para filmes como um observador neoliberal que tudo que consome precisa ter valor agregado ou utilidade aparente. Isso é um saco.

O espectador tiktoker

Get Out (2017)

O cinema não consegue ter um valor somente em sua imanência sensorial mais. Tudo precisa ser assimilado com outras coisas ou precisa ser espremido para mostrar todos os subtextos e mensagens que pretende passar. Chamo esse tópico de o espectador tiktoker, pois vi que muitas pessoas correram na plataforma para fazer vídeos recomendando obras para quem gostou de Saltburn, e produzindo conteúdos explicativos sobre o final (sim, pessoas explicando o final de Saltburn existem). Vi pessoas recomendando Corra! do Jordan Peele para quem gostou de Saltburn, e sinceramente, fiquei com uma leve raiva desse espectador médio e sua falta de interpretação em relação a obra de arte hoje em dia (ou o excesso dela). É claro que as redes sociais, o algoritmo, deixam o espectador cada vez mais ansioso. Além de que eu observo muito que algumas pessoas que fazem conteúdo para a internet não enxergam mais valor em consumir a obra, ter uma experiência com a arte, seja ela qual for, e já consome para conseguir produzir em cima ou qualquer coisa do tipo. É como se a obra de arte já fosse concebida para ser assimilada com outras coisas e ordenhada igual uma vaca, até secar e não sobrar mais nada. Só ver o quanto de conteúdos que tem no Youtube com o título de “FINAL EXPLICADO”. Ninguém aguenta mais isso. Acho que precisamos parar de ter um olhar mais ansioso e comandada por estímulos e algoritmos que ditam nosso dia a dia e começar a olhar filmes como uma experiência sensorial com um valor em sua imanência. Só assim podemos superar o algoritmo e o mercado e largar mão desse “olhar tiktoker” que precisa sempre explicar algo, ser expositivo quando vai falar de uma obra de arte, enquanto a própria arte por si só vai perdendo seu valor. Acho que é isso que queria desenvolver nesse texto. Que Deus abençoe a arte pela arte.

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