Don L entre realidades e ficções

Caio Vinicius
7 min readNov 21, 2023

--

Ou quando o rap vira filme

Como começar a falar do favorito do seu favorito? Don L, rapper de Fortaleza que atualmente mora em São Paulo, sempre teve um estilo de fazer rap que me agradou. Fiel as suas vontades, militante, comunista e extremamente visual, a forma do rapper de construir histórias visuais que lembram desde Rogério Sganzerla a Tarantino, falam de um Brasil que se perde entre a realidade e a ficção, já que nada é tão cinematográfico quanto viver na periferia do capitalismo. O terceiro mundo já foi representado em tela por vários cineastas que vão do cinema novo ao movimento do cinema marginal. Don L tem um estilo muito visual, que me lembra bastante o jeito que Notorious B.I.G fazia rap. BIG, que era conhecido por ser o Alfred Hitchcock do hip-hop, fez trabalhos como “Warning”, que poderia ser facilmente um Scarface do Brian de Palma. Warning tem uma direção de arte que lembra muitos os filmes de ação dos anos 80. Uma letra que fala sobre uns gangsters que querem matar BIG por sua ascensão na cena do rap. O exagero e a forma que Notorious constrói a narrativa, joga o ouvinte em um filme que daria um ótimo Blaxploitation. Don L era parte do grupo de rap Costa a Costa, que serviu de norte para alguns trampos que saem até hoje na cena do rap. Desde o inicio, Don já tinha uma levada cinematográfica no seu sangue e uma vontade e habilidade incrível em retratar a marginalidade e a periferia de Fortal, além de seus anseios, medos e ambições. “Dinheiro, sexo, drogas e violência de costa a costa” foi uma mixtape que Don lançou com seu antigo grupo em 2007 e que inspirou muitos rappers, além de ser muito atual até os dias de hoje. Um trabalho que vai envelhecer como os melhores filmes e vinhos já feitos. O rap é um estilo de música que já é cinematográfico por natureza. Isso é fato. Então, queria falar um pouco de porque Don L, na minha concepção, é um dos rappers no Brasil que melhor fala com a linguagem cinematográfica desde sempre.

Alguns trabalhos visuais de Don, desde “Morra bem, viva rápido”, faixa da mixtape “Caro Vapor / Vida e Veneno”, seu trampo de 2013, ano que foi para São Paulo, tem uma atmosfera que vai desde um estilo parecido com as obras de Wong Kar Wai até climas mais introspectivos como o próprio Karim Aïnouz, que o rapper faz uma referencia em “Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2 e 3.”, sua trilogia reversa que vou comentar logo em seguida. “Morra bem, viva rápido” tem uma direção de arte que hipnotiza. Filmado em Lisboa, o videoclipe segue mostrando a cidade, mulheres, Don e seu carro, em uma sincronia com a publicidade que aparece em uma narração de fundo. O rapper sempre teve um discurso anti capitalista, de inclusão, procurando retratar o caos e a violência de quem vive na periferia do terceiro mundo. “Morra bem, viva rápido” fala dessa busca material que todos nós estamos inseridos. Afinal, arte e publicidade andam juntas hoje em dia. Ter um projeto musical ou um filme que consiga ferir o espírito do capitalismo, hoje em dia é muito difícil, afinal, o capitalismo se apropria dos discursos militantes e de revolta para gerar lucro e subverte esses discursos em mais publicidade. Don em “Morra bem, viva rápido”, demonstra uma ambição que contrasta com uma espécie pessimismo. Não temos para onde correr em meio a tantos desejos criados por demanda dos grandes publicitários? Talvez morrer bem seja viver rápido.

E a cento e vinte na avenida
Eu vi a modelo sorrindo pra mim
O outdoor brilha, cê não entende a fita?
Nós tudo vive pra morrer, mas luta pela vida

“Caro Vapor” tem outros ótimos trabalhos visuais, como por exemplo o clipe de “Sangue é Champanhe”, que não está disponível no Youtube por causa de sua nudez subversiva e provocativa que inunda o videoclipe. O visual de Autumn Sonnichsen, que faz o trabalho parecer um filme de Sganzerla, com suas imagens sexys e provocativas, que esbanjam uma mensagem visual que lembra muito o cinema marginal, já referenciado por Don L em “A Batida da procura perfeita”, que tem uma sample de “Documentário", obra de 1966 de Sganzerla onde dois homens em um dia de ócio procuram oque vão fazer na cidade de São Paulo. Conversando sobre cinema e problemas rotineiros. O curta tem uma carga de anseio por mudanças no áudio e visual da época, mostrando que os dois personagens de Rogério Sganzerla não sabem bem oque vão assistir, e que estão entre possibilidades. O cinema marginal foi um movimento que procurou retratar a fome, a miséria e a violência do terceiro mundo de forma poética e performativa sem perder sua essência revolucionária e suja. A periferia do capitalismo no melhor estilo. “A Meia Noite Levaria sua Alma”, de José Mojica, por exemplo, faz uma desconstrução do terror. Mostrando um protagonista cético, mal por essência e que está cheio de conflitos e contradições internas consigo mesmo. “HITLER 3º MUNDO”, de José Agrippino de Paula, mostra um líder que tenta implementar um regime fascista no terceiro mundo. O clássico do movimento, “Bandido da Luz Vermelha”, retrata um arquétipo típico do cinema marginal; um homem fracassado que trata sua própria situação com escárnio e inconsequência. Um fruto de as contradições de seu contexto histórico. Um homem a margem da sociedade. Criminoso digno de desprezo que ganha as telas por Sganzerla, escancarando os problemas e as contradições do Brasil de sua época. Os vilões e anti-heróis frutos de um país comandado por um sistema em crise, ganham vida no cinema marginal e nas letras de Don L.

Aquela Fé

Uma frase muda o fim do filme

“Roteiro Pra Aïnouz, Vol. 2 e 3.” são seus trampos mais cinematográficos na minha opinião. Com faixas incríveis e aclamadas pelos fãs do rapper de Fortal como “Aquela Fé”, minha música preferida do terceiro volume da trilogia inversa. “Aquela Fé” é uma faixa que conversa muito comigo e com muitos momentos de minha vida que me senti sem perspectiva. Sem perspectiva de melhora para mim, para minha realidade, para minha família e amigos. Já teve momentos que achei que o mundo ia desabar, e queria ter esperança de novo. É como se tudo tivesse ficado cinza, distante, um borrão abstrato no meu campo de visão. O colapso mental, as correrias do dia a dia fazem a gente soltar a nossa esperança, que vai por terra assim como nossa sensibilidade. A busca pela ascensão financeira, pelo ganho material, implica em um distanciamento ao nosso eu interior, a nossa vida espiritual e a nossa felicidade coletiva como seres humanos. O colapso que o rapper retrata no começo, onde diz que a sua casa virou uma crack house, que as garrafas lembram fases do passado, Don fala de lembranças que chegam igual garrafas de náufragos. “Aquela Fé” é uma faixa que fala sobre as contradições do rapper, de momentos de dificuldade nas quebradas de Fortaleza, e momentos que ele queria voltar a ter uma ingenuidade que ficou no passado. Ele queria ver o mundo de forma mais leve. Saudade da época que era devoto da santa ignorância. As vezes, saber demais deixa a vida mais difícil de prosseguir, por não conseguir ficar alheio a tantas injustiças. É uma faixa que vai além das grandes metrópoles homogêneas do eixo do rap nacional. Uma faixa que traz uma sensibilidade perdida. Que dá uma vontade de buscar aquilo que a gente já tinha desde o início. Afinal, toda verdade absoluta é uma fraude, e precisamos sempre correr atrás de uma esperança que as vezes pode estar adormecida dentro da gente, por causa das contradições de um mundo cão. A selva de pedra assusta, mas uma frase muda o fim do filme!

Meus irmãos não fecharam o secundário
Deixaram de ser réu primário e já eram pais
Ou tiveram que segurar um barraco e já era a paz
Um a um, ficaram pra trás

Nas ruinas da H Stern
​Achei um topázio a cara dela
​Combina com aquela 47
​Da alça dourada que ela leva

Uma faixa que queria comentar de RPA2, é “Pânico de Nada”, que chega com uma narração do rapper falando de um caos que está no seu campo de visão. O início de uma revolução que não vai acontecer caso os trabalhadores não segurem em armas e vão tomar oque for seu por meio dessa violência já feita há séculos de forma legal pelo estado burguês a toda uma sociedade que vive a margem. Quando ele diz “usar as armas e roubar as armas, render os polícias e abrir a grade, tomar o quartel e render os guarda, chamar o povo e tomar a cidade”, é um anseio e uma projeção imagética desse levante revolucionário. A faixa em questão mostra duas perspectivas sobre uma mesma realidade, revelando a vontade de viver sem ter medo de morrer amanhã. Serve de inspiração para vermos que nossos inimigos são tão mortais quanto nós, independente se eles ficam no alto de seus prédios que foram construídos graças ao sangue dos explorados. “Pânico de nada” é repetido várias vezes na faixa, como um mantra. Uma lembrança de como somos fortes e de como a coragem prevalece a dificuldade. Don é inspiração para mim e um dos melhores da cena desde quando não estava no Spotify dos boy. É um mestre que vai ter sempre seu lugar nos melhores do rap de todos os tempos. Que viva os nossos e guerra a eles.

--

--