De Nolan a Kurosawa: os dois lados da mesma moeda

Caio Vinicius
6 min readNov 20, 2023

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Akira Kurosawa e Christopher Nolan entram em um bar

Oppenheimer (2023)

Acho fascinante o conflito da segunda guerra mundial. Seja pelas mudanças que o conflito causou na sociedade da época e as mudanças que ficaram até hoje. Estudei consideravelmente o conflito, mesmo a maior parte de estudos sempre focarem (e com razão), na barbárie alemã e no fascismo italiano. Temos que condenar sempre o monstro que foi o regime nazista e os milhares de mortos em campos de concentração. Pessoas essas que tiveram seus direitos revogados, sua existência impedida e sua identidade pulverizada por monstros humanos. Acho interessante estudar sobre outras óticas do contexto da segunda guerra. Christopher Nolan lança em 2023 o ótimo filme “Oppenheimer”. A obra foca na construção e na liderança do projeto Manhattan para a criação da bomba atômica que foi feita pelo físico J Robert Oppenheimer. O filme, com uma duração ótima de três horas que você nem vê passar, tem seus erros e muitos acertos. Acho que um dos erros foi retratar Oppenheimer como um gênio singular e individual, que criou a bomba sozinho. Mas na real, esse não é em si um problema tão grande. O filme foca em como o protagonista se constrói como físico, indo para a Europa e depois voltando para os Estados Unidos para articular seus conhecimentos que foi afiando com o passar dos anos, desde sua inclinação a ideologias de esquerda, até a preparação da bomba em Los Alamos e depois, as consequências e a dor do protagonista que foi o “pai” de um dos projetos de destruição que matou mais de 100 mil pessoas direta ou indiretamente. O filme de Nolan tem uma construção de três atos ótima, que foca em apresentar personagens, sem ser muito expositivo aos eventos, que vamos descobrindo conforme a trama vai avançando, com os dois tribunais que só somos jogados ali no meio, por exemplo. A segunda parte do filme é focada em Los Alamos, onde Oppenheimer desenvolve e faz o teste Trinity, em uma das cenas mais esperadas e fascinantes do longa e a terceira e última parte, onde vemos o protagonista ser mergulhado por um ressentimento atroz. A trama constrói Oppenheimer como um possível vilão, que fica em um dilema ético na construção da bomba atômica, que se baseia no simples fato de que se eles não construírem, nazistas vão. E nada pode ser pior do que os nazistas com uma arma de destruição e massa dessas, não é mesmo? Bom, acho que talvez só os norte americanos.

I Live in Fear (1959)

Esse pôster é muito foda. Meu Deus do céu. Uma coisa que vi as pessoas comentarem, é a falta de representação da visão japonesa em relação ao lançamento das bombas em Hiroshima e Nagasaki no filme do Nolan. Os japoneses são citados algumas vezes, mas nunca mostrados. As consequências do governo norte americano da época, dos militares, dos cientistas e do próprio Oppenheimer não são mostradas visualmente de forma explicita, só por meio das emoções conflitantes e angustiantes do protagonista durante a última parte da narrativa. Então, queria comentar aqui sobre um filme de 1955, do incrível cineasta Akira Kurosawa. Kurosawa é um dos nomes mais incríveis e importantes do cinema de todos os tempos. Fez um dos meus filmes preferidos, Ran, uma adaptpção de Rei Lear, Trono de Sangue, adaptação de Macbeth, Ikiru, Stray Dog, Dreams e vários outros que o colocaram como um dos melhores cineastas de todos os tempos. O filme que eu quero abordar aqui, I Live In Fear (1955), é um dos menores e menos conhecidos do diretor, por uma simplicidade na forma, pelo período que estava sendo filmado e por algumas limitações que Kurosawa sofria na época do pós guerra, e por um tema que vai um pouco longe dos temas que o diretor geralmente é mais conhecido, que são narrativas de guerreiros samurai. I Live In Fear é sobre medo. Medo atômico. O filme sai dez anos depois da queda das bombas de Hiroshima e Nagasaki. Mostra um patriarca dono de uma fábrica, Kiichi Nakajima, interpretado pelo maravilhoso Toshiro Mifune, que já tinha trabalhado com o diretor em Rashomon e Seven Samurai, basicamente sofrendo de um trauma e um medo constante de um futuro perigo atômico eminente que beira a obsessão e a loucura, mas ao mesmo tempo, é extremamente palpável para os japoneses da época. Os filhos de Nakajima durante a trama, vendo o pai gastar com um bunker que não chega nem a ser concluído, para se proteger de possíveis lançamentos de bombas, que não aconteceram, decidem recorrer judicialmente para seu pai ser colocado como inapto a administrar o dinheiro da família, assim, poupando a herança de seus filhos no futuro. Takashi Shimura, que faz Harada, um mediador da corte que acompanha o caso, vê um medo palpável no protagonista, que sofria de um trauma que estava dentro do seu âmago. Nakajima quer ir para o Brasil com seus filhos, porque alega que um dos lugares mais seguros na época eram a américa do sul. Faz de tudo para conseguir fazer seus filhos ir com ele, mas todos são contra. O personagem vê raios de luz no céu, sons de trovões, e já pensa nas bombas. É um trauma que fica com ele desde quando viu oque aconteceu em seu país. Tem inúmeras histórias bizarras em relação ao lançamento das bombas, mas o trauma que ficou nos japoneses é extremamente palpável para nós, ocidentais, que temos uma visão muito distante daquele medo sentido pelos japoneses que tiveram sua vida, sua cultura e seu futuro mudado drasticamente. Algumas obras que vieram depois do conflito, mostraram como o Japão expressou sua leva de sentimentos em relação ao conflito em obras culturais. Gojira (1954), um filme que sai nem dez anos depois dos lançamentos em Hiroshima e Nagasaki, mostram um monstro que é a personificação em tela do medo atômico dos asiáticos. Akira, outro exemplo de filme que mostra um Japão abatido, em reconstrução. Que teve sua identidade cultural e potência econômica industrial afetada por um conflito que deixou marcas para a população durante muitos anos. O filme de Kurosawa mostra o trauma recente de um homem que não consegue sequer viver sem pensar no passado sombrio que bate na porta dele toda vez que tem lembranças do conflito. O medo de Akira Kurosawa em tela é muito real. Oppenheimer traz uma perspectiva individual da criação da bomba focando no físico e I Live In Fear mostra o trauma que tiveram que carregar durante décadas da ameaça nuclear. Tomara que os dias sejam melhores. As vezes penso o porque dos Estados Unidos não ter saúde público e gastar bilhões em investimento militar. O gasto americano em 2022 foi de cerca de US$ 877 bilhões com poderio militar, segundo o Instituto Estocolmo para a Paz Mundial; Ou seja, 39% de todo o gasto militar do mundo em 2022 foi dos EUA. Saúde público? Não. Armas de destruição em massa são muito melhores. Além do mais, como o país vai continuar com a dominação imperialista que só se dá pelo medo e o assassinato de inúmeros povos durante todos os anos? O cinema é muito importante para a construção do pensamento coletivo mundial. O cinema tem um poder de propaganda política gigantesca. Isso foi usado na segunda guerra mundial pelo governo de Adolf Hitler para fomentar a raiva e o sentimento coletivo em apoio a guerra. O cinema é importante para demonstrar de forma imagética e clara seus inimigos, amigos e seu objetivo. Entender a maquina de propaganda e como ela é usada, para passar seus medos, como Kurosawa, ou para demonstrar seus arrependimentos e sua possível culpa, que as vezes me parece um pouco projetada, falsa, em Oppenheimer. Achei ótimo não terem mostrado os Japoneses. Norte americanos não são bons em assumir a culpa dos problemas que causaram no mundo, e tudo poderia simplesmente deslanchar numa falsa culpa. Adorei as duas obras, mesmo que na minha opinião, Kurosawa é muito mais mestre do cinema do que Nolan poderia sonhar. Assistam ambos os filmes. Recomendo demais

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