a imoralidade de “Pobres Criaturas” (2023) e o espectador contemporâneo

Caio Vinicius
9 min readMar 1, 2024

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O filme de Lanthimos incomodou e eu acho que foi pouco

Emma Stone em “Pobres Criaturas”

Esse texto contém spoilers. Oque falar de um diretor como Yorgos Lanthimos, que eu tenho uma relação de amor e ódio. Acho um diretor que tem uma visão interessante sobre alguns temas, mas que na maioria das vezes, se perdeu em uma rigidez excessiva em alguns de seus longas que tinham muito potencial. O primeiro filme que eu vi do diretor grego foi seu primeiro, Dogtooth (2009). Ambientado na Grécia com atores gregos, o filme é sobre como o controle parental excessivo mina a construção da subjetividade dos filhos. Os pais dos três filhos mantém todos proibidos de qualquer contato com o mundo fora da casa. Deixando eles presos em um espaço limitado. Nem mesmo buscar brinquedos que acabam saindo do portão eles são permitidos. Só tem um adendo, essas “crianças” na verdade, são adultos que acham que são crianças. Adultos que são tratados como crianças, e que assim, ficaram impossibilitados de qualquer possível amadurecimento. Os pais criam nomes falsos para coisas que usamos no cotidiano, e a única possível forma dos filhos se desprender dos pais e ter um primeiro contato com o mundo fora dos muros, é quando o dente canino deles cair. O único caminho que os pais dão para o amadurecimento e a liberdade que é privada dos filhos. o filme aborda como a privação ao mundo exterior, a cultura e a liberdade destrói qualquer possível construção de uma subjetividade. Lanthimos tem uma ideia interessante nesse longa, que infelizmente, acho que se perde pelo motivo citado a cima, a sua rigidez. É como se o diretor tivesse o queijo e a faca na mão e não quisesse comer. Lanthimos não se joga de cabeça no seu longa. Parece distante e inseguro com o processo, e o resultado saiu limitado, dando um vislumbre do que poderia ter sido caso o diretor se jogasse de vez em alguns maneirismos que foi experimentando conforme foi progredindo na sua carreira. O segundo filme que eu vi do diretor foi Sacrifío do Cervo Sagrado (2017). Me agradou mais que Dogtooth, porém, ainda assim não achei grande coisa na época. O filme é sobre uma família, e mais especificamente, sobre um cardiocirurgião Steven Murphy, interpretado pelo maravilhoso Colin Farrel. O filme começa com Steven fazendo uma cirurgia de coração, com uma câmera que vê o procedimento sendo feito de cima, depois, filmando o personagem de Farrel com uma aura quase mística. Observamos também uma relação no mínimo incomum de Steven com um garoto, Martin (Barry Keoghan). Que Steven presenteia com uma relógio, e que parece se preocupar com o garoto. Mais pra frente, ficamos sabendo que Martin teve o pai morto por Steven durante uma cirurgia que ele fez enquanto estava sob efeito de álcool, e que a aproximação do Collin Farrel com o menino é um puro ato de remorso. Além dos presentes e da relação estranhissima dos dois, Steven convida Martin para jantar na casa dele, com a esposa, sua filha e seu filho caçula. Um dia, o filho de Steven acaba perdendo o movimento das pernas. Depois de um tempo, sua filha também. Até que Martin revela que ele é o responsável por tudo oque está acontecendo com seus filhos, e que a previsão é que tudo só vai ficar pior, ao ponto do filho caçula começar a sangrar pelos olhos. A única saída para tudo acabar, só vai ser possível se Steven sacrificar um membro de sua família. O diretor faz uma releitura da tragédia grega Ifigênia. No texto escrito por Eurípides cerca de 2.400 anos atrás, o rei Agamêmnon mata um cervo sagrado numa caçada e assim incorre na ira da deusa Ártemis, que exige dele um sacrifício: ele deve matar a filha Ifigênia, ou os ventos não deixarão os navios do rei sair para fazer guerra em Tróia. Nicole Kidman, Sunny Suljic e claro, Barry Keoghan dão um show. O filme me agradou muito mais que o anterior, mas ainda, senti uma rigidez que continuou me incomodando. O filme tem ótimos momentos, mas sinceramente, sinto que se ele tivesse se agarrado em uma espécie de dark comedy, por assim dizer, o filme teria mais potêncial pra mim. Ele é montado nitidamente de uma forma artificial, assim como todos os seus filmes. Seus personagens são irreais, reproduzindo diálogos nada naturalistas e agindo com uma estranheza curiosa, que faz o espectador ficar incomodado do começo ao fim. Vários cenários são construídos com uma artificialidade proposital mas mesmo assim, acho que Lanthimos leva seu longa a sério demais, oque o impede de decolar. A cena final é um grande exemplo disso, de uma cena com um potencial gigantesco, mas que sua inflexibilidade e a possível insegurança do diretor só fez parecer ridícula aos meus olhos.

O Lagosta (2015)

O seu longa de 2015, O Lagosta, teve um impacto parecido com o filme citado anteriormente pra mim. O primeiro filme do diretor filmado em língua inglesa segue David (Collin Farrel), um homem recém separado, que vive em um mundo onde estar solteiro é proibido. Todas as pessoas que ficam sozinhas, se hospedam em um hotel e são destinadas a arrumar um parceiro durante um período de tempo determinado e caso isso não aconteça, são transformados em um animal de sua escolha. Collin Farrel continua incrível aqui. Com uma atuação minimalista, estranha e impessoal. David não se encaixa muito bem com as normas impostas pela sociedade de um casamento obrigatório, e acaba se juntando a um grupo de pessoas que vivem na marginalidade, sozinhas, sem parceiros e “livres” de quaisquer convenções pseudo-moralistas. Porém, ele acaba se apaixonando por uma mulher, algo totalmente proibido nesse seu novo grupo, e isso acaba acarretando problemas para David. O filme escancara e problematiza a relação autoritária com o matrimônio na sociedade, e ao mesmo tempo, também problematiza a rebeldia no “anticasamentismo”. Os dois lados, a rebeldia e o conservadorismo seguem totalmente polarizados e autoritários. O diretor aborda como o amor e nossas necessidades narcísicas podem também ser a ponta de lança para uma possível cegueira. Acho que o filme tinha um grande potencial, além de um elenco majestoso (Collin Farrel, Rachel Weisz, Olivia Colman, Léa Seydoux, John C. Reilly e Angeliki Papoulia), ele não parece ter algo muito grandioso para entregar. O final é muito interessante, talvez a melhor parte do filme, que começa muito bem, mas não segue de vez em seus maneirismos, e que parece cortar suas próprias asas em muitos momentos. Além de uma estranheza pouca convincente do diretor, que deixa tudo meio cômico, mas que ao mesmo tempo, não se agarra nessa comicidade e tenta ser outra coisa. Aos meus olhos, o diretor só precisava se encontrar, e ele finalmente se encontra em Pobres Criaturas (2023).

O mais novo filme de Lanthimos, inclusive o melhor de toda a sua carreira, mostrou que o diretor pode sim trabalhar com seus temas transgressores sem perder o bom humor que expõe os conflitos de uma sociedade doente cegada pelo fundamentalismo religioso de suas convenções. Sua estranheza tem materiliadade, e não um aspecto artificial e sem alma como em seus longas anteriores. Pobres Criaturas segue Bella Baxter, uma mulher que foi reanimada por Deus (Willem Dafoe), depois de tentar suicídio estando grávida. Deus, uma espécie de Victor Frankenstein. Ele reanima Bella, mas retira seu cérebro e substitui ele com o cérebro da criança que estava em sua barriga. Assim, a personagem de Emma Stone, Bella Baxter, é uma criança em desenvolvimento em um corpo adulto. Ela aprende a falar, andar, seu papel no mundo e suas limitações por ser uma mulher no século 19 na era vitoriana. O amadurecimento da personagem também faz ela descobrir seus desejos e sua sexualidade, que ela enxerga fora de uma ótica construída por uma sociedade falso moralista. Além de tudo isso, ela também constrói seu posicionamento político e vai em busca de sua liberdade, que parece estar sendo limitada a todo instante por seus dois parceiros Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) e Max McCandles (Ramy Youssef), que procuram sempre possuí la. O diretor, Yorgos Lanthimos, que trabalhou com Emma Stone antes em A Favorita (2018), faz o seu melhor trabalho aqui. Com um visual maneirista que deixa o filme dinâmico, um experimentalismo em ambientação, figurino, atuações em um contexto surreal, que distorce a realidade e expressa a ingenuidade de Bella a cada instante. Aquela Lisboa é tão irreal e tão incrível. Tudo parece artificial aqui, mas de uma forma magistral, o diretor aproveita de sua artificialidade, para criar um filme que comenta sobre como a sociedade sempre tentou limitar o corpo e a autonomia da mulher, que sem as amarras morais da sociedade, ela parece ser mais forte do que nunca. Quero comentar uma coisa específica que li vindo de pessoas que assistiram Pobres Criaturas: reclamações e uma visão moralista sobre a trama e as cenas de sexo no longa.

O sexo como tabu em tela

Algumas cenas de sexo em Pobres Criaturas provou que o público se chocou com muito pouco. A geração Z, que por mais estranho que pareça, se incomoda muito com cenas de sexo em filmes. Além de ter uma falta de noção interpretativa com obras de ficção. As cenas de sexo em Pobres Criaturas não tem nada demais. São importantes para a construção da personagem, e para a discussão que o diretor causa com dilemas morais reproduzidos por uma sociedade que se agarrou na hipocrisia do fundamentalismo religioso e que se incomoda com muito pouco. Mas uma cena não precisa ter uma razão e uma importância na construção da narrativa para ser colocada no filme. Assumir que toda nudez é objetificada é um julgamento moral. O ato é tão natural quanto qualquer outra coisa, e se incomodar com sexo na película, só demonstra uma falta de maturidade do público para lidar com tais reproduções imagéticas. Violência e outras coisas nunca chocaram esse público, mas algumas cenas de sexo sim. A tal geração Z que nunca iria sobreviver até o final de um thriller erótico do Paul Verhoeven, ou os filmes transgressores do cinema que celebra a comunidade queer de John Waters. A sexualidade em um mundo com situações e um cotidiano tão castrador quanto o nosso é sempre deixada de lado, mas com o tempo, necessidades de se reinventar e pensar o desejo nas telas do cinema sempre vão voltar. O brasileiro principalmente parecia mais favorável a discutir sexo nos anos 80 e 90. Claro que saíamos de um contexto de 20 anos de ditadura, e que tínhamos necessidade de desconstruir dogmas ultrapassados e redescobrir nossos desejos, que não saíram de moda e muito menos de tela, só começou a ser mais discutido com a redemocratização. Alguns estudos apontam que realmente, a geração Z faz menos sexo que gerações anteriores. Mas ao mesmo tempo, uma maior criação e divulgação de nudes acontecem em redes como o próprio onlyfans. Seria só mais uma prova que a sexualidade só é reproduzida quando favorece o capital? Esse olhar puritano no cinema com certeza pode matar a arte, já que até séries como Casa do Dragão, por exemplo, foi pegando muito mais leve com cenas de nudez e de sexo, que eram marca registrada de Game Of Thrones, por exemplo. Já foi cogitado também por alguns usuários do X (antigo Twitter) a criação de um botão de pular cenas de sexo, como um pular abertura de séries. Acho que as pessoas que viram o rosto para algo tão natural quanto o sexo, mas foca quando o assunto é assassinato e violência, além de continuar consumindo e criando conteúdo em cima da sexualidade quando favorece o status quo e a produção de capital, é só mais uma prova que a nossa falta de libido reflete a nossa cultura tecnicista e liberal. Nossa realidade castra qualquer rastro de libido e desejo, ou transforma esse desejo em consumo. Oque vai ser da nossa geração Z e de seu olhar virgem para as produções cinematográficas? A arte vai morrer e renascer, e eu espero que volte com mais tesão.

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